Bruce Dickinson – A Carreira Solo


"O trabalho solo de Bruce revela um artista ousado, sem fronteiras ou medo de experimentar”

Por Felipe Godoy para o Wikimetal

Uma das maiores “maldições” que pode se abater sobre um músico proveniente de uma grande banda que sai em carreira solo é o poder mercadológico que usualmente emana do nome/marca que fez seu passado. Cite o nome que for, de Rob Halford a Ozzy Osbourne, e todo grande músico que sai em busca de novas pairagens musicais e artísticas longe do agrupamento que lhe trouxe fama vai ter que arcar com comparações constantes com sua antiga banda.

O caso de Bruce Dickinson não é muito diferente. Apesar do hit Tears Of The Dragon, a maior parte da carreira solo do velho Air Raid Siren passou totalmente despercebida pelo grande público. A questão é que subestimar essa fase da carreira do cara é uma das maiores injustiças que um rocker de respeito pode cometer.

O trabalho solo de Bruce revela um artista ousado, sem fronteiras ou medo de experimentar, representando aos olhos de um pequeno – mais fiel – grupo de fãs (inclusive para este que vos escreve) um trabalho muito mais completo e de maior qualidade do que qualquer coisa que o Iron Maiden, banda que tornou Bruce mundialmente famoso, tenha feito desde a volta do mesmo e de Adrian Smith às suas fileiras em 1999.

Repassemos agora a carreira solo de Bruce Dickinson disco a disco, dando uma geral no que esses geralmente subestimados álbuns têm a nos oferecer.

“TATTOOED MILLIONAIRE” (1990)



Um disco despojado, recheado de Rock N’ Roll com sabor setentista”

O primeiro disco solo de Bruce Dickinson começou de maneira totalmente inesperada, com o baixinho ainda sendo membro oficial do Iron Maiden. O convite para fazer parte da trilha sonora do filme “A Nightmare On Elm Street 5: The Dream Child” e a vontade de trabalhar com o velho amigo Janick Gers acabaram rendendo a faixa Bring Your Daughter…To The Slaughter (mais tarde regravada pelo próprio Maiden). A coisa pareceu funcionar tão bem que logo a proposta para um álbum completo foi feita pela gravadora.

Contando, além das guitarras de Janick, com o auxílio do baixista Andy Carr e do batera Fabio Del Rio, o que temos aqui é um disco despojado, recheado de Rock N’ Roll com sabor setentista da melhor qualidade e a produção do sempre excelente Chris Tsangarides (Judas Priest, Anvil e muitos outros). Nada menos do que quatro músicas se tornaram singles/clipes:Dive, Dive, Dive, a autobiográfica Born in 58, o maravilhoso cover do Mott The Hoople escrito por David Bowie All The Young Dudes e o clássico instantâneo que dá nome ao disco,Tattooed Millionaire – esta, dizem, um recado a um certo baixista de nome Nikki Sixx que havia “rosetado” com a mulher de Bruce e representava tudo o que o mesmo via de errado com a humanidade e o Rock N’ Roll como um todo.

Houve também uma tour de promoção para o álbum, envolvendo no geral pequenos clubes abarrotados de fãs e uma banda transbordando energia. O baterista Fabio Del Rio não pôde fazer os shows devido a outros compromissos, sendo substituído por Dickie Fliszar. É essa formação que vemos no lançamento oficial em vídeo “Dive Dive Live”, que registra um show completo dessa tour. Na época Bruce detestou o resultado dessas filmagens graças às frescuras do diretor responsável, a ponto de querer impedir o lançamento jogando as fitas originais dentro de um rio! Hoje em dia, no entanto, ele não acha mais a coisa tão ruim assim e até celebra o fato de haver algum registro completo daquela época tão especial.

“BALLS TO PICASSO” (1994)



O disco representava a necessidade constante de reinvenção que Bruce sempre buscou enquanto artista”

O segundo disco solo de Bruce Dickinson teve um parto extremamente difícil e repleto de traumas e rupturas. Foram feitas nada menos do que três versões completamente diferentes do álbum antes de algo que realmente agradasse Bruce ser completado.

A primeira versão contava novamente com a produção de Chris Tsangarides e os músicos da banda Skin. Ainda como membro do Maiden, o material soava demasiadamente ligado ao trabalho da Donzela e acabou sendo descartado exatamente por isso. Bruce precisava se desconectar de tudo aquilo e fazer algo realmente diferente. Pediu as contas do Maiden e contratou os trabalhos do produtor Keith Olsen (Ozzy, Scorpions e outros). A ideia agora era ir na contramão: absolutamente inspirado por seu ídolo Peter Gabriel ele resolve encarar o desafio de produzir música de sabor mais eletrônico, absolutamente irrotulável e, naqueles tempos, totalmente vanguardista.

Aquilo ainda não era o que Bruce buscava. Foi quando alguém o apresentou ao trabalho de uma banda de rock de sabor latino chamada Tripe of Gypsies, e ficou embasbacado sobretudo com o trabalho do guitarrista – um jovem que atendia pelo nome de Roy Z. Os dois começaram a compôr juntos e não deu outra: toda a segunda versão de “Balls…” também foi para o lixo, sendo substituída pelo novo trabalho bem mais pesado e orgânico feito agora pelos dois e com produção de Shay Baby – embora hoje em dia Bruce diga que preferia que o próprio Roy tivesse produzido o disco. Mais músicos do Tripe of Gypsies colaboraram com o projeto: o baixista Eddie Casillas e o baterista Dave Ingraham.

Bruce finalmente conseguiu o que queria: sem necessariamente fugir do lado mais pesado da música e acompanhado pelos músicos do Tripe of Gypsies, “Balls to Picasso” é um disco sem fronteiras e extremamente corajoso. Repleto de groove, percussão, peso e definitivamente distante do som que o fez famoso no Maiden, o disco representava a necessidade constante de reinvenção que Bruce sempre buscou enquanto artista, além da tentativa quase desesperada de escapar das fórmulas e de tudo o que o mundo parecia esperar dele.

O álbum rendeu os singles/clipes Shoot All The Clowns (música encomendada pela gravadora, que queria ouvir algo que soasse mais ou menos como o Aerosmith dos anos 70) e a famosa Tears of the Dragon, o único sucesso maistream de Bruce em carreira solo e a única música que resistiu a todas as três encarnações do disco. Boa parte das faixas descartadas das duas primeiras versões podem ser ouvidas nos vários singles lançados para a promoção do álbum e também na versão dupla remasterizada de “Balls…“, que traz nada menos do que 16 bonus tracks.

“SKUNKWORKS” (1996)



Um álbum de qualidade, só que bem mais conectado ao cenário do Rock indie/alternativo de então do que ao Metal. Contribuiu para o surto de raiva dos fãs o novo corte de cabelo de Bruce”

Depois do lançamento de “Balls to Picasso” Bruce estava sem banda de apoio. Os músicos do Tribe of Gypsies tinham compromissos a cumprir e não poderiam sair em tour com ele. Foi quando conheceu o jovem guitarrista Alex Dickson e recrutou o baixista Chris Dale e o baterista italiano Alessandro Elena para os shows. Um ótimo documento dessa fase – que rendeu bons shows no Brasil em 1995 – pode ser ouvida no álbum ao vivo “Alive In Studio A”, que também traz um outro CD como bônus, ‘Alive At The Marquee”.

Essa formação tinha uma boa química e Bruce sentiu que talvez fosse hora de voltar a ter um clima de banda real em seu trabalho. Agora batizada de Skunkworks e produzida pelo mago do som alternativo dos anos 90 Jack Endino (Nirvana, Titãs e outros), a banda saiu do estúdio com um produto final que agradou Bruce profundamente, ao mesmo tempo em que alienou boa parte de sua base de fãs mais Heavy Metal.

Ao contrário do que muita gente diz, “Skunkworks” (o disco) nada tinha do famigerado cenário Grunge que causava calafrios aos fãs de Bruce Dickinson. Ele é, sim, um álbum de qualidade, só que bem mais conectado ao cenário do Rock indie/alternativo de então do que ao Metal. Contribuiu para o surto de raiva dos fãs o novo corte de cabelo de Bruce e alguns comentários dele aqui e ali, dando conta da insatisfação que sentia com certos setores da música pesada e a necessidade extrema da mesma sempre se ater a fórmulas pré-estabelecidas.

Bruce havia sido dispensado da EMI e agora era contratado da bem menor Castle Records. A resposta do mercado ao disco foi pífia, mesmo com mais dois singles/clipes sendo lançados:Back From The Edge e Inertia, esta última inspirada pela viagem da banda a uma Sarajevo em pleno clima de guerra. A tour de divulgação do disco ainda rendeu o vídeo ao vivo de longa duração “Skunkworks Live”, que acabou se tornando o testamento dessa formação.

“ACCIDENT OF BIRTH” (1997)



Já que a ideia era revisitar as raízes e ser Metal à enésima potência com muito orgulho, que tal chamar o velho amigo Adrian Smith para o projeto?”

Com o ego ferido depois de ver muita gente considerar “Skunkworks” um fiasco, Bruce achou que era chegada a hora de voltar a fazer aquilo que havia feito sua fama inicialmente: Heavy fucking Metal! Isso numa época em que toda a grande mídia dizia e repetia que o estilo estava morto. Mr. Dickinson não estava nem aí: ele queria backdrops, luzes e até mesmo um novo mascote. Resolveu começar chamando novamente os músicos do Tribe Of Gypsies, deixando pela primeira vez a produção nas mãos de Roy Z. Na época totalmente desconhecido, hoje em dia a simples menção desse nome em um projeto ligado ao Metal agrega valor imediato à coisa graças ao currículo invejável que o cara arregimentou ao longo desses anos, incluindo seu trabalho com Rob Halford e Judas Priest, entre dezenas de outros.

Mas ainda havia algo mais: já que a ideia era revisitar as raízes e ser Metal à enésima potência com muito orgulho, que tal chamar o velho amigo Adrian Smith para o projeto? Adrian também estava fora do Maiden já há alguns anos e tentava a sorte então com seu projeto Psycho Motel. Não foi necessário pensar muito para ver que a coisa toda representava uma equação feita no paraíso para quem sentia falta de ver os dois responsáveis pela criação de hinos como 2 Minutes to Midnight e Flight of Icarus trabalhando juntos e sobretudo para quem não estava contente com os rumos que a música do Iron Maiden – na época com Blaze Bayley nos vocais – estava tomando nos últimos anos.

O resultado? Simplesmente um dos melhores discos de Heavy Metal dos anos 90. Desde a capa contando com o novo mascote, o fantoche Edson (sacou a piada?) até a gravação, passando pelos arranjos, letras e todo o pacote, a banda chegou bem perto do que podemos chamar de “perfeição”, embora a mesma não exista. Três singles/clipes foram lançados para divulgar o disco: Road To Hell, a bela balada Man of Sorrows (que chegou a ser gravada numa hilariante versão em espanhol) e a matadora faixa-título Accident of Birth.

Os brasileiros puderam testemunhar toda essa mágica ao longo de alguns shows que rolaram no país em 1997, e vale a pena procurar a filmagem profissional do festival Skol Rock, transmitido ao vivo na época pela MTV Brasil, no qual a banda mostra a que veio debaixo de muita chuva e uma energia quase descomunal. Embora o headliner da noite fosse o Scorpions, grande parte da platéia foi embora depois do show de Bruce. Levante a mão quem estava lá!

“THE CHEMICAL WEDDING” (1998)



Se alguém que se considera headbanger não sentir vontade de sair tocando guitarra imaginária pela casa com Book of Thel, é bom repensar algumas coisas na vida.”

Como em time que está ganhando não se mexe, Bruce manteve para esse disco exatamente o mesmo line up do anterior, em todos os aspectos – incluindo a banda e a produção de Roy Z. E ele estava certo, pois “The Chemical Wedding” consegue algo quase impossível: ser ainda melhor do que “Accident of Birth”. Tudo o que fez do disco anterior um verdadeiro “must” está ali novamente, só que ainda mais pesado e aperfeiçoado. Se alguém que se considera headbanger não sentir vontade de sair tocando guitarra imaginária pela casa ao som do peso descomunal e da pegada de Book of Thel, é bom repensar algumas coisas na vida.

A banda inteira brilha no disco, e mais dois singles/clipes foram lançados: os engraçadíssimosKilling Floor (trazendo Bruce como um garçom em meio a um cenário que representa os pecados capitais) e o semi-hit The Tower no qual até o fantoche Edson faz um pontinha. Toda a parte gráfica e conceitual de “The Chemical Wedding” é inspirada pela arte do pintor/poeta maldito William Blake (cujas ilustrações adornam o livreto do CD) e outras personalidades que lidavam com o lado oculto da vida na ânsia de buscar o auto-conhecimento. A história acabou se tornando um filme produzido por Bruce anos depois, que pode ser encontrado com o mesmo nome do disco ou como “Crowley”, dependendo do território.

Nessa época os boatos da volta de Bruce e Adrian ao Maiden começaram a ficar mais fortes e se tornaram reais no começo de 1999. Bruce já avisa que a fase de longas tours solo também havia chegado ao fim, mas que divulgaria “The Chemical Wedding” por mais alguns meses antes da volta definitiva ao “lar”. Os shows passam pelo Brasil mais uma vez e a empolgação e a sintonia da banda com os fãs é tanta que um álbum ao vivo gravado por aqui é logo lançado, com o nome de “Scream For Me Brazil”.

“TYRANNY OF SOULS” (2005)



Mesmo com esse clima mais estéril, meio desleixado e até mesmo frio, “Tyranny of Souls” é destruidor do começo ao fim.”

Um bom número de anos se passaram desde “The Chemical Wedding” e Bruce já estava confortável de volta às fileiras do Maiden, tendo gravado dois novos discos por lá. Numa das pausas que a banda deu para respirar Bruce achou que talvez fosse hora de mais um trabalho solo, já que Roy Z havia entregue uma fita repleta de novos riffs para sua análise. A ideia agora era bem diferente do clima de guerrilha dos anos 90, não haveria tour – e na verdade a banda nem sequer se encontraria para gravar as músicas. A concepção era a de fazer o maior número possível de boas músicas, gravá-las, colocar tudo em um CD, lançar e só. Sem shows, sem maiores alardes, apenas por satisfação pessoal.

As gravações também refletiam a era dos home studios e do Pro-Tools. Cada uma das partes em um canto do mundo, trocando gravações à distância, juntando tudo, ajustando aqui e ali. A banda era basicamente Bruce e Roy, com os outros instrumentos sendo gravados por músicos contratados como o (excelente) baterista David Moreno.

Mesmo com esse clima mais estéril, meio desleixado e até mesmo “frio” das gravações no âmbito interpessoal da coisa, “Tyranny of Souls” é destruidor do começo ao fim. Seguindo a mesma linha total metal de “Accident…” e “Chemical…“, a dupla Z e Dickinson fez aquilo o que todos os fãs descontentes com os trabalhos mais novos e repletos de influências prog do Maiden esperavam: distribuíram porrada para tudo quanto é lado, partindo para uma direção ao mesmo tempo técnica e agressiva, fazendo assim a festa de quem sente falta dessa faceta no trabalho atual da Donzela. A maior prova disso foi escolhida como single/clipe: a simplesmente aniquiladora Abduction, que mostra o que a dupla Z/Dickinson é capaz de fazer quando se junta.

O disco também teve clima de celebração, com o relançamento de toda a discografia solo de Bruce remasterizada e recheada de bonus tracks. Espera-se agora que um dia o baixinho se anime a ponto de nos brindar com mais uma continuação dessa saga que só é devidamente apreciada como deveria por poucos, mas que deixou para a posteridade pequenas e verdadeiras obras-primas. E para quem quem deseja começar a conhecer essa história tão rica, duas dicas: em CD temos “The Best of Bruce Dickinson” (2001) e em DVD o sensacioal DVD triplo “Anthology” (2006) perfazendo toda a carreira e a videografia completa de Bruce solo – incluindo todos os clipes, os videos de longa duração (Dive Dive Live e Skunkworks Live), o shows de São Paulo em 1999 que deu origem ao álbum ao vivo “Scream For Me Brazil”, comentários, entrevistas, material do Samson (o hilariante curta metragem Biceps of Steel, de 1980), um press kit eletrônico de “Tyranny of Souls” e muito mais. Imperdível!

Torço para que esse texto sirva para deixar alguém que ainda não conhece o trabalho solo de Bruce curioso o bastante para entrar nesse mundo tão fascinante. E se você já conhece e gosta, que sirva para você sentir vontade de escutar mais uma vez seu disco favorito dessa fase, seja qual for.

UP THE BAIXINHO!

Sobre Iron Maiden Brasil

Iron Maiden Brasil