A coluna Distorção do "Portal O Dia" de Teresina / PI, capitaneada pelos meus amigos Diego Iglesias e Mara Vanessa, conversou com Rodrigo Medina Zagni, autor do artigo científico "When two worlds collide: representações do real e monstruosidades fantásticas no conjunto simbólico das capas de álbuns e singles da banda Iron Maiden" – lembrando que é a primeira vez que a banda ganha espaço em revistas científicas brasileiras, em estudos dessa natureza.
Rodrigo é historiador, professor, pesquisador, doutorando e guitarrista da banda Prodigal Sinner (Metal Tradicional), dando um salto qualitativo ao assumir um tema que exige muito mais do que empenho; exige também coragem e paixão.
Confira a entrevista:
Distorção - Manifestação, renovação social e liberdade. O que mais faz do Heavy Metal um estilo ‘condenado’ à eternidade?
Rodrigo Medina - Certamente não o estilo, mas o espírito que, por meio dele, se manifesta. A explosão frente ao recalcamento das restrições sociais, a transgressão à ordem posta, a irreverência frente aos poderes estabelecidos, a desobediência aos códigos de conduta impostos por aqueles que gozam de poder, a afronta à moral religiosa, a denúncia da corrupção da alma humana, o mergulho em seus vícios e vicissitudes: não é recente na História o Homem expressar seus desejos, anseios e frustrações por meio da música. Aliás, esta que precede a própria linguagem falada, que inventou a mentira; na expressão musical da alma humana, por meio da sonoridade, encontramos mais facilmente o Homem em estado puro. Sendo assim, o espírito que hoje é catalisado pelos acordes distorcidos do Heavy Metal pode ter habitado, guardadas as devidas proporções, sonoridades como as de Mozart e Beethoven, por exemplo, que ao seu tempo foram vistos, por muitos, como transgressores de uma estética musical estabelecida, bem como aos valores postos em suas respectivas sociedades. Pensar a eternidade para o Heavy Metal implica em verificar a permanência de comportamentos que, em transformação na marcha da História, continuam respondendo a estímulos que permanecem quase inalterados, alocados no mais profundo abismo da condição humana. Toda sociedade está fadada a deixar de existir e todos os sistemas culturais estão condenados à perene transformação, logo, o Heavy Metal, que mais que uma mera sonoridade, representa um estilo de vida, para futuras gerações terá deixado de existir; mas seu espírito não, o que moverá a condição humana a explodir os grilhões que insistem em acorrentar a juventude, o questionamento crítico e o novo, a reinventar sonoridades onde esse espírito continue a se manifestar de forma criativa.
Distorção - Você acredita que a sociedade, como um todo, já está mais receptiva a este segmento musical?
Rodrigo Medina - Para mim, não existe sociedade como um todo; mas segmentos sociais recortados por diversos fatores; e vou me ater aqui àqueles que determinam segmentos em condição de poder. Na música, assim como em toda arte, a contemporaneidade teve que se adaptar à conformação da indústria cultural, na qual está inserida a indústria fonográfica. O mass media, definitivamente, obliterou os antigos estamentos entre alta cultura (a música erudita, por exemplo), e a baixa cultura (a música popular), fazendo ambos circularem como enlatados culturais, é claro que em mercados um tanto quanto específicos. Mas, em linhas gerais, isso ajudou a superar alguns preconceitos, no caso do Heavy Metal, dentre distintos segmentos de sociedade. Alia-se a isso o fato de estarmos já da terceira para a quarta geração daqueles que ouviram os primeiros acordes do estilo, sendo seus anciãos ainda fiéis guardiães do que se pode denominar já como tradição; portanto não se pode dizer, definitivamente, que se trate de um ímpeto adolescencial! Mas não sejamos ingênuos: no caso brasileiro, o Heavy Metal, não como um embalado cultural, mas como um campo de produção de sentidos, ou, como queiram, um estilo de vida, segue incompreendido por aqueles que se acham portadores ou de alta cultura, ou devotos do popular. Importante notar que foi o Heavy Metal que se abriu, muito recentemente, para a música que se possa dizer “tradicional” ou até mesmo “folclórica”, incorporando, como no caso de diversas bandas brasileiras, elementos de música tanto popular como erudita, sem uma contra-resposta simétrica. Parece-me que o Heavy Metal quer expandir fronteiras e dialogar com outros estilos; mas aqueles que poderiam ser interlocutores, salvo raras exceções, são sisudos demais!
Distorção - E como foi a abertura para a elaboração do seu artigo dentro do espaço acadêmico, caracterizado pelo estilo quase sacramentado da sisudez dos temas?
Rodrigo Medina - O trabalho teve uma excelente recepção na Universidade Estadual de Londrina, que o publicou na revista Domínios da Imagem, lançada durante um importantíssimo evento acadêmico. Mas, em São Paulo, quando ainda era apenas um projeto, houve imensa resistência por parte da comunidade acadêmica, dos alunos aos professores; mas, mais gravemente, dos alunos.
Primeiro por que na universidade pública, no caso paulista, ocorre um interessante e lamentável fenômeno. Muitos dos que ingressam em cursos, principalmente nas ciências humanas, são portadores de sistemas culturais marginalizados pela sociedade: como reggae, hip-hop, maracatu etc. Quando alcançam a universidade pública, lugar ainda (não sei até quando) do livre pensamento, do espírito contestador e crítico, passam a poder exercer mais livremente seus sistemas que, em sociedade, se encontravam em condição subalterna frente a uma ordem cultural dominante (imposta pelos veículos de comunicação de massa). É importante dizer que uma parte desses estudantes, de fato, pertencem a esses sistemas; outra é trazida para dentro dele, pois se inicia uma dinâmica coercitiva para que se adote vestimenta similar, cortes de cabelo, domínio de um determinado repertório, inclusive musical; e a cultura que antes era subalterna vai se tornando dominante. Com isso, outros sistemas, como o Heavy Metal, por exemplo, que implica em outra indumentária, outro tipo de cabelo e um repertório completamente distinto, passam a ser marginalizados. Para se ter idéia, quando o trabalho foi pensado no âmbito de uma disciplina de História e Fontes Visuais, um grupo de alunos sistematicamente passou a ridicularizar a proposta porque pensavam tratar-se de uma manifestação de adesão a uma política cultural norte-americana. Nego-me a responder aqui a esse argumento de tão pobre que soa, revelador de um lastimável desconhecimento àqueles que se pretendiam historiadores, obviamente muitos não conseguirão caso não superem sua limitada visão de mundo. Mas, um argumento interessante foi o de que não podíamos estudar algo que gostássemos tanto, pois perderíamos o poder de crítica. Aí sim, um argumento que merece resposta! Drummond costumava dizer que odiava os lingüistas porque, ao analisarem seus poemas, matavam nele toda a beleza literária. De fato fazemos isso, ou melhor, deveríamos fazer: matar o sapo antes de dissecá-lo! Como se pode estudar o sapo vivo? E quando se tem paixão pelo objeto (como no meu caso)? Há duas opções: 1) Não se mata o objeto e, portanto, não há possibilidade de análise crítica, o que há é um tipo de profissão de fé, ou reafirmação ideológica ou, pior, tietagem. Definitivamente não é o que me propus a fazer! 2) Matar o objeto! E admito, para mim, fã da banda, foi muito mais difícil fazê-lo, se comparado a outros que se propusessem a fazê-lo. O difícil seria encontrar alguém de fora do movimento que não estivesse ideologicamente engajado à idéia de que se trata de um estilo musical somente, não um modus vivendi. Foi, sim, muito mais difícil; mas pude fazê-lo e de forma crítica. Mas deixe-me dizer algo: Carlos Ginzburg, renomado historiador italiano, especialista na atuação da Inquisição contra os judeus, não havia percebido, até que um amigo próximo lhe chamasse a atenção, de que havia escolhido seu objeto de estudo porque seu pai, judeu e militante anti-fascista durante a Segunda Guerra Mundial, havia sido preso e assassinado por ser judeu. Obviamente há uma relação de empatia entre historiador e objeto, a questão é gerenciar distanciamentos para, como disse, não cair em ideologismos.
Distorção - A retomada histórica de “When Two Worlds Collide” foi mais do que oportuna, podendo servir de base teórica e apoio para futuros trabalhos científicos. Como foi o processo de catalogação das fontes, já que acervos disponíveis ainda são escassos?
Rodrigo Medina - Limitei-me às imagens que circulam nas capas dos álbuns da banda; mas há uma quantidade imensa de imagens que são produzidas e circulam nesse sistema cultural que é o Heavy Metal. Tomara que a iniciativa estimule novos estudos não só sobre imagens, mas outros aspectos desse estilo de vida. Está por ser escrita ainda uma História Social do Heavy Metal, um estudo sociológico de seus vários subgrupos, bem como sobre os aspectos filosóficos, ou mesmo literários, nele implícitos.
Distorção - O trecho “Os que viveram o heavy metal nas décadas de 1970 e 1980 não são hoje, necessariamente, motociclistas de terceira idade, vestindo jaquetas de couro, com cabelos e barbas longas e grisalhas, com mulheres louras na garupa de suas chopers e Harley Davison’s; muitos são burocratas, banqueiros, analistas de sistema, médicos e vejam só: historiadores!”, traduz, integralmente, o pensamento dos milhões de headbangers espalhados ao redor do mundo, sempre taxados de “geração perdida”, “vagabundos” e “marginais”, quando, na verdade, essa padronização só leva a julgamentos precipitados, criando os famosos “guetos” culturais.
Rodrigo Medina - Evidentemente isso é fruto de juízos de valor, geradores de sensos comuns, de onde advém o esteriótipo ou o rótulo do headbanger como vagabundo ou marginal.
É claro que sub-grupos de intolerância, dentro do Heavy Metal, auto-intitulados “trues”, que intimidam e até mesmo agridem outros grupos apenas por não dominarem um determinado repertório, não ajudam em nada. Mas já está claro que essa visão esteriotipada é expressão do mais medíocre preconceito.
Distorção - Você faz várias observações importantes sobre a relação entre as capas dos álbuns e singles do Iron Maiden e a influência e relevância da banda frente aos aspectos históricos, culturais e sociais da Inglaterra – marcadamente da geração esmagada pelos punhos fortes de Margaret Thatcher, primeira-ministra britânica de 1979 a 1990, conhecida pela alcunha “Donzela de Ferro”. E no Brasil, qual é o nome (ou quais são os nomes) dentro da esfera Heavy Metal que representaram os anseios e perspectivas da geração de 1980 a 1990 (período de relativa abertura e avanços democráticos no país)?
Rodrigo Medina - Nesse sentido, o Punk fez muito mais que o Heavy Metal. Coincide com a abertura política e a anistia que se deu aos assassinos e torturadores do regime militar e com as greves gerais conclamadas pelo movimento operário. O jovem, no Brasil, tinha problemas muito mais graves que os da Europa ou EUA, o que requeria ações políticas concretas. Na região do ABC, por exemplo, bandas como Garotos Podres, 365, Cólera etc., tiveram um papel importantíssimo no engajamento de jovens, passando a representar seus sonhos de vida até mesmo parte de estratégias políticas para a superação da ordem posta.
Mas, do período, penso que bandas como Golpe de Estado, Status Quo, Metralion, Dorsal Atlântica, Taurus, Vulcano, MX, o antigo Sepultura, entre outras, representem bem esse espírito que se adaptou à uma realidade muito distinta da européia e estadunidense.
Distorção - Obrigada pela atenção, Rodrigo. Você gostaria de deixar algum recado para os leitores do Distorção?
Rodrigo Medina - Foi um prazer imenso ter a atenção de vocês, obrigado pelo espaço e UP THE IRONS!
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Para trocar uma ideia com o Rodrigo, basta enviar um e-mail para: rodrigo.historia.usp@gmail.com
E quem quiser ler o trabalho dele EM PDF CLIQUE AQUI
fonte: Flight666
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